Por: Déborah Rocha
Para iniciar o presente artigo, é necessário conceituar o termo principal:
Sindérese é a capacidade natural da consciência humana de reconhecer o que é certo e errado. É uma inclinação inata para o bem. São Tomás de Aquino fala sobre a sindérese em uma de suas obras “Suma Teológica” (Summa Theologiae), especialmente na Parte I da Segunda Parte (I-II), questão 94, que trata da lei natural.
Ele descreve a sindérese como o hábito dos primeiros princípios da lei natural, ou seja, aquele conhecimento básico do bem e do mal que está impresso na alma humana. Segundo ele, a sindérese leva o ser humano a fazer o bem e evitar o mal.
Aristóteles não usa o termo “sindérese” diretamente em suas obras esse conceito é desenvolvido mais tarde por autores cristãos, especialmente pelos escolásticos, como São Tomás de Aquino. No entanto, a base filosófica da ideia de sindérese em Tomás vem, sim, de Aristóteles, especialmente de sua ética e teoria da razão prática.
A obra principal de Aristóteles que influencia esse conceito é a Ética a Nicômaco, onde ele trata da razão prática (phronesis ou prudência) e da capacidade humana de distinguir o bem e agir conforme ele.
São Tomás de Aquino inspirou-se em Aristóteles, que na antiguidade afirmou que a razão percebe que uma coisa não pode ser falsa e verdadeira ao mesmotempo. Assim como a intuição nos ensina a não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fosse feito, a moral da sociedade estabelece princípios como o respeito aos mais velhos e a proteção de mulheres e crianças; essa capacidade de perceber necessidade de cooperação, percepção essa imediata de cooperarmos, São Tomás de Aquino chama de Sindérese, que o indivíduo olha para a sociedade e logo sabe o que tem que fazer. A ideia de sindérese, retomada por Tomás de Aquino a partir da herança aristotélica, assume um papel fundamental como princípio racional da consciência prática.
Compreendida como a predisposição natural da razão para o bem, a sindérese não é um conceito abstrato ou apenas teológico, mas sim uma reflexão de uma racionalidade moral que precede e guia a aplicação das normas. É a capacidade que permite ao ser humano, mesmo sem qualquer formação jurídica, identificar intuitivamente os princípios básicos de uma ação justa: a necessidade de promover o bem, evitar o mal, a importância da reciprocidade na justiça, o respeito nas relações sociais e os limites que a dignidade do outro impõe à nossa liberdade.
Ao reinterpretar a ética aristotélica dentro de uma perspectiva cristã, Tomás de Aquino não criou uma separação entre razão e fé, mas uniu ambas em uma visão de mundo em que a razão prática está inserida na ordem natural. Assim, a sindérese atua como um guia moral interno que permite ao indivíduo, mesmo na falta de regras explícitas identificar o que é justo. Em um cenário jurídico em constante transformação, onde as normas muitas vezes falham em abarcar as complexidades da vida social, a sindérese se destaca como uma ferramenta epistemológica essencial para que o direito mantenha sua conexão com seu propósito fundamental: a promoção do bem comum. Entender a conexão entre sindérese e direito requer ir além da visão positivista que trata a norma jurídica como um comando isolado e autossuficiente, neste contexto podemos utilizar como exemplo, a definição de autopoiese por Niklas Luhmann, que diz, o direito como organismo vivo é capaz de produzir-se e de sobreviver mudando a si mesmo de modo autônomo para ser sempre mais adaptado a desenvolver a própria tarefa numa sociedade que muda.
O direito, em sua essência dinâmica, é permeado por valores que não se limitam à legalidade restrita. O fenômeno da interpretação mutável, presente em muitas constituições contemporâneas, demonstra que as normas, apesar de sua aparente estabilidade, são reinterpretadas com base em novas demandas éticas. Essa flexibilidade do direito não é um defeito, mas sim uma característica positiva de sua historicidade. Embora o texto legal permaneça, seu significado evolui de acordo com a sensibilidade moral da sociedade e dos que o interpretam. É exatamente nesse ponto que a sindérese se relaciona com a justiça: ao permitir que a razão reconheça as necessidades éticas que surgem na vida social, ela permite que o direito se renove, sem desvirtuar sua essência original.
A relação disto com a jurisprudência é que o Direito vai se adaptando as necessidades e costumes, então onde se encaixa a Sindérese com a jurisprudência, no sentido do direito ser um mutante, no sentido da mutação constitucional, que até um tempo jurídico, que significa o seguinte, o dispositivo constitucional não muda em virtude da nossa constituição ser super rígida precisando para mudar de um processo legislativo bem complicado/complexo. Dessa forma, é possível reinterpretar dispositivos constitucionais. Um exemplo é o artigo 226, “caput”, da Constituição da Republica Federativa do Brasil ( CRFB/88), que originalmente dispunha que a família era formada por um homem e uma mulher.
Contudo, atualmente, admite-se a existência de famílias monoparentais e de uniões homoafetivas. Essa mudança reflete uma mutação constitucional para atender aos interesses da coletividade. Nesse contexto, onde entra a Sindérese de São Tomás de Aquino? - Na aceitação de novas configurações familiares, a ampliação dos direitos de grupos anteriormente ignorados e o foco nas vulnerabilidades sociais, entre muitos outros aspectos, resultam não apenas de mudanças legislativas, mas também de uma interpretação aberta a um novo ethos social. Neste cenário, a atuação do juiz não deve se restringir a aplicar silogismos normativos. É essencial que ele ouça, com a razão sensível mencionada por Aristóteles, os apelos concretos por justiça. É nesse momento que a sindérese atua de maneira discreta, como um guia interno da consciência jurídica. Ela não estabelece normas, mas as direciona. Não substitui o sistema legal, mas traz-lhe claridade. Ao identificar na dor do outro a necessidade de uma resposta justa, a sindérese propõe que o direito se torne mais do que um mero conjunto de regras: um caminho ético para a convivência. A jurisprudência, portanto, é mais uma expressão da racionalidade prática do que uma técnica de padronização. Quando os tribunais reinterpretam uma norma em nome da equidade, não estão quebrando a legalidade, mas enriquecendo-a moralmente. Isso representa um exercício prudente de discernimento que reconhece que, embora o direito não deva ser exclusivamente moral, também não pode se distanciar dessa dimensão..
A Sindérese se manifesta nesse contexto: o Direito fortalece a moral da sociedade quando é ágil, humano e baseado na equidade, especialmente no sentido material. Sendo a jurisprudência um conjunto de julgados semelhantes, e uma ciência do direito em que questões sociais novas são trazidas para o direito e não bastando apenas a regra rígida formal para serem estas questões apreciadas sendo necessário bom senso do Estado de juiz para suprir a necessidade de legítima justiça A jurisprudência se aproxima da Sindérese de São Tomás de Aquino, pois reconhece a necessidade de que as pessoas cooperem e se respeitem além das normas estritas. Dessa forma, a norma jurídica evolui ao acompanhar a jurisprudência, que, ao ser admitida pelos tribunais, reflete novos interesses e reformula o ordenamento jurídico. Mas como, afinal, a jurisprudência reformula o Direito? Reformula no sentido de o poder legislativo em vista dos tribunais superiores decidirem em prol daquelas pessoas vulneráveis vai ditando regras e os tribunais vão editando súmulas que viram mais tarde leis, e essas leis acabam sendo aplicadas de uma forma bem sofisticada de modo a garantir presteza na proteção dos Direitos individuais das pessoas vulneráveis, pessoas vulneráveis que se atendidas se tornam mais cooperativas por se sentirem seguras naquele meio social a ponto de a intuição abraçar uma moral que vale na moral, uma moral universal que chamamos de ética. Assim, a Sindérese aquiniana se expande para além do tradicionalismo religioso, impulsionada pela jurisprudência que admite inovações.
Concluímos que, diante disso, a sindérese deve ser recuperada como um conceito essencial na filosofia jurídica. Ela serve como um elo entre o ser e o que deve ser, entre a realidade e os valores, assim como entre a norma e a justiça. Em períodos de crise ética, quando a desumanização ameaça desestabilizar as bases do convívio legal, lembrar que o direito se origina da razão moral é um ato de resistência filosófica. Tomás de Aquino nos ensina que a justiça não se inicia nas cortes, mas sim em uma alma devidamente formada. Nesse contexto, a sindérese permanece relevante: não como um resquício de um passado escolástico, mas como um alicerce atemporal de um direito que aspira à justiça.
Déborah Rocha é Bacharel em Direito, e Pós Graduanda em Direito Licitatório e Contratações Públicas.